MACAÚBAS EM UMA BREVE HISTÓRIA HOLLYWOODIANA SOBRE O FUTURO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE EM UM MUNDO PANDÊMICO

Por Sócrates Menezes
    (Arte: Victor Defensor)

Em um futuro não muito distante, a realidade será um pouco diferente. As pessoas serão mais inteligentes e sábias. Todas as coisas que acontecem nesse mundo acontecem em todos os lugares e ao mesmo tempo. E essa realidade será moldada conforme nossas verdades, nossas crenças, medos e desejos. Precisaremos apenas alimentar esse mundo com as informações sobre essas nossas vontades para que ele seja aquilo que queiramos. Para isso todos usarão uma pequena máquina produtora de pequenas realidades que sempre carregaremos nos bolsos, como caixinhas pretas. Todos construirão para si seu próprio perfil de realidade que estará nesse mundo de todos, absolutamente compartilhado.

Mas, porque as pessoas se tornaram mais inteligentes e sábias diante desse mudo de múltiplas realidades disponíveis a todos e ao mesmo tempo, desenvolveu-se um problema de razão e comunicação. As pessoas não conversam, pois suas realidades é que conversam. E as realidades são infinitas de tal forma que não se torna mais possível manter um padrão de sociabilidade comum: todos têm sua verdade posta para todos em todo mundo e ao mesmo tempo. Então, a própria verdade e a não-verdade têm o mesmo crédito a ponto de que valores antes considerados sólidos são pulverizados diante da opinião, ou da verdade, de cada um: conhecer ou não conhecer, saber ou não saber, é um mero detalhe desprezível. Por isso, esse mundo é também desorganizado, confuso e desumano. O “bom senso” pode significar “agressão” para um outro. A “solidariedade” se torna um tipo de hipocrisia, na mesma intensidade com que torturadores se tornam heróis. A ciência vira ideologia enquanto mais o fanatismo religioso se torna razão. O discurso ofensivo se torna um “jeitão sincero de ser”, tanto quanto o ódio vira uma forma eficiente de governar. Enfim, a reflexão e o pensamento se declinam perante a força do argumento, este que pode ser achado, até na forma de desenhinhos, nas maquinazinhas de realidades ao alcance do bolso, nas caixinhas pretas.

Nesse mundo, onde as pessoas são mais inteligentes e sábias, a ignorância é o trunfo da verdade: ignorar é saber. E assim se tornou comum banalizar, além da realidade, a vida e a morte. A importância sobre elas é só uma questão de opinião. A vida se desmaterializa para se cristalizar nessa eterna construção de realidade: a vida é o que se quer dela, não o que se pode viver. Enquanto a morte se torna um dado tolerável, ao mesmo tempo em que se banaliza nos números estatísticos, nas cores dos corpos e na posição social deles; uma exuberância de atenções alheias para a audiência nos canais policialescos da televisão.

Nesse mundo futuro mediado pelo atenção alheia, a audiência é um dado concreto da verdade. Quanto mais visualizações, mais real. Por isso mesmo, Hollywood também se inova. Na indústria de entretenimento o projeto cinematográfico “Coronavírus” é escrito e precisa ser produzido. Uma pequena cidade do sertão baiano é escolhida para ambientar as filmagens. Mas, o projeto cinematográfico é secreto porque se trata de um “reality show” misturado com uma espécie de documentário. Por isso, as pessoas da pequena, pacata e hospitaleira cidade de Macaúbas não saberão o que acontecerá com elas nos meses que se seguirão a essa grande trama entre ficção e realidade. Na verdade, o projeto “Coronavírus” é um tipo de jogo onde ninguém ganha. O objetivo é não morrer. A parte macabra do roteiro é o que dá a ele audiência. E os espectadores verão como que nessa cidade, famosa pela sua gente amistosa, onde todos se conhecem e são amigos, exatamente por isso deverão se expor à morte. O desafio é acreditar ou não. Isso determina quem vai viver e quem vai morrer. Um jogo de alto risco, mas ainda assim, crer ou não crer, e em qual verdade, será decisivo, mas ainda assim uma questão de opinião. Nesse mundo onde ficção e realidade se misturam, trocar a vida pela morte é apenas um problema de invenção de realidades. Cada um então montará a sua com a força do argumento e da ignorância produzida nas caixinhas pretas disponíveis nos bolsos.

A produção hollywoodiana contrata cientistas chineses para que seja fabricado um potente vírus que deverá se espalhar pelo mundo de forma assassina. As pessoas se assustam com a novidade, mas tudo está tão longe! É preciso um sintoma de razão e incerteza sobre o futuro macabro que se monta pelos continentes e países. Então, o coronavírus se espalha pelo mundo matando milhares de pessoas. China, Coréia do Sul, Itália, Espanha, EUA... parece ainda muito longe! “Isso é doença de rico, doença de onde tem natal com neve”. Mas ela chega, porque (não esqueçamos), para o bem ou para o mal, o mundo se faz em todos os lugares e ao mesmo tempo. A realidade bate na porta com tom fúnebre. Cidades vizinhas noticiam. O comércio fecha, a vida social se fecha, os alardes são dramáticos. “Mas quão exagero?” “Doença que mata só velho”. A Itália, onde matou mais de 20.000 pessoas, é tido como um país de velhos. No entanto, basta lembrar que o Brasil tem mais de duas vezes a quantidade de idosos do que lá (30 milhões de idosos brasileiros contra 13,6 milhões idosos italianos). Neste mundo, quando se fala de estatística, esquece-se da vida de nossa gente.

A matemática futurística é mortal. Está tudo nos dados oficiais. No Brasil, com a média de infecção de 111 pessoas para cada um milhão de habitantes e mortalidade de 5,7% dos contaminados, a COVID-19 contabiliza sua milésima morte apenas 25 dias após o primeiro caso fatal. Isso indica que a curva de mortalidade é quase igual da Itália, que atingiu a milésima morte 21 dias depois da primeira. Os descrentes, na sua realidade de caixinha preta, chutam 10.000 mortes no país. Pode ser mais, pode ser menos, caso as medidas preventivas não sejam tomadas a contento. Mas, ainda é tudo uma questão de opinião. Na Bahia, a mortalidade já é de 3,04% dos infectados e com a necessidade de internação de 13% deles. Nessa realidade, é importante destacar que o estado da Bahia tem 3.260 respiradores mecânicos, com mais da metade dessa quantia disponibilizada apenas em uma cidade, a capital Salvador. Ainda assim, deste total de aparelhos indispensáveis ao tratamento intensivo contra o novo coronavírus, 95% deles já estão em uso. E aí, outra realidade bate novamente em nossas portas: quantas UTI’s e aparelhos respiradores mecânicos há na pequena Macaúbas? A pele arrepia de medo. Como trataremos nossos doentes sem a devida estrutura? Alguém morre, não se sabe ao certo o porquê. Lembramos dos nossos entes queridos ainda vivos, antes diluídos na frieza dos números estatísticos. Para onde mandaremos nossos conterrâneos se nas outras cidades os hospitais já estarão abarrotados? A realidade entristece. Quantos e quem desses nossos não resistirão? É tudo uma questão de opinião: crer ou não crer?

Se é impossível saber ao certo, voltamos ao “reality show” macabro e perturbador que se escancara diante de nós: quantos desses milhares de brasileiros, baianos, serão macaubenses? Quantos desses teremos que escolher porque burlamos alguma medida para continuar alguma “normalidade”? E quantas vidas normais estarão em jogo, nesse jogo necrófilo, simplesmente porque a vida de um amigo, de uma mãe, de um avô ou de um vizinho, não foi colocada como importante? E quanto dessa normalidade será insuficiente quando não restar qualquer resquício de paz nesse futuro inacreditável? É tudo uma questão de opinião?

O que acontecerá nesse futuro não muito distante? A resposta está na porta de casa, na calçada, na rua. Basta abrí-la.

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